Literatura tóxica

A review of The Road of Excess by Carlos Graieb for Veja Online that was originally published on January 22, 2003.

Empregada originalmente como anestésico para cavalos, a ketamina transformou-se em Special K, uma droga popular nas raves, aquelas festas que duram até de manhã e são movidas a música tecno. Seu efeito mais marcante é produzir breves estados de apagão, durante os quais os usuários são sugados para o que chamam de “dimensão K”. Ainda não se conhece nenhum poema ou ficção que trate dessa experiência, mas o crítico inglês Marcus Boon não tem dúvida de que eles logo surgirão, assim como já existem romances sobre o ecstasy. “Neste momento, algum adolescente está escrevendo um romance com o título Dimensão K”, afirma ele. E isso acontece porque 200 anos de escrevinhação inspirada pelas drogas ou a respeito delas acabaram por consolidar um gênero literário. Em The Road of Excess (A Via do Excesso), Boon reconta a história desse gênero de maneira inovadora e cativante, apesar de acadêmica. Recém-lançado nos Estados Unidos, o livro aborda textos famosos e outros nem tanto, assim como fala de viciados confessos e de autores que preferiram não se alongar sobre suas experiências com substâncias clandestinas.

O fundador da literatura tóxica, diz Boon, foi o inglês Thomas De Quincey, que, em 1821, publicou Confissões de um Comedor de Ópio. Depois dele, outras figuras registraram suas viagens. O francês Charles Baudelaire criou a expressão “paraísos artificiais” em 1860, para descrever o estado induzido pelo haxixe e pelo láudano. Seu conterrâneo Henri Michaux, já no século XX, explorou os efeitos da mescalina. O alemão Walter Benjamin filosofou sobre o haxixe. O romancista inglês Aldous Huxley fez testes com psicodélicos. E os beats americanos, como Jack Kerouac e William Burroughs, banquetearam-se num verdadeiro smorgasbord de substâncias. Boon, no entanto, não se limita às figuras mais conhecidas.

The Road of Excess mostra que, se De Quincey inaugurou o discurso literário sobre as drogas, anteriormente já havia autores bastante íntimos delas. No século XVII, por exemplo, o poeta inglês John Dryden zombou em versos de um dramaturgo adversário por seu vício em ópio – um “remédio” que o crítico Dr. Johnson, na mesma época, também usava. Os românticos ingleses Keats, Byron e Shelley foram consumidores ocasionais do láudano – ao passo que seu colega Samuel Coleridge viciou-se realmente, de 1790 até sua morte, em 1834. Seu poema Kubla Khan, de 1816, é antecedido de uma nota que revela como “um sono induzido por droga” levou à composição. Na Alemanha, o poeta Novalis (1772-1801), apreciador do ópio, especulava filosoficamente sobre seu uso na criação de “um novo corpo”. E até o extraordinário Goethe, uma das maiores figuras do século XVIII, pode ter dado um tapinha no haxixe – segundo um manuscrito descoberto recentemente na Áustria.

Marcus Boon também discute casos pouco explorados do período “pós-De Quincey”. Um dos mais interessantes é o do francês Marcel Proust, autor de Em Busca do Tempo Perdido, um monumento literário modernista. Acometido de asma e problemas do sono, desde a adolescência ele tomou coquetéis que incluíam barbitúricos, ópio, morfina, heroína e éter. Embora louve a maneira como Proust refletiu, por exemplo, sobre o problema da percepção do tempo, a crítica até hoje negligencia o fato de que seu corpo “estava sempre inundado de substâncias que produzem exatamente as reações cognitivas descritas em seus livros”. Outro exemplo curioso é o do filósofo Jean-Paul Sartre. Nos anos 50, ele se entupia de anfetaminas. Isso resultou num estilo palavroso e desordenado de escrita, e em obras virtualmente impenetráveis como Crítica da Razão Dialética e Saint Genet. Além desses estimulantes, Sartre também fez uso de um psicodélico, a mescalina. Seus colegas pensadores Martin Heidegger e Michel Foucault o imitaram nesse ponto, embora tenham preferido o LSD.

Segundo Marcus Boon, drogas diferentes produziram diferentes efeitos literários. Narcóticos como o ópio deram origem a uma espécie de gnosticismo – a crença de que o homem está preso num mundo corrompido, e de que a droga proporcionaria o vislumbre de um outro universo, autêntico, onde reside a verdade. O haxixe engendrou utopias de transformação social. Os psicodélicos ficaram associados a experiências esotéricas. Já os estimulantes, como a cocaína, são as drogas menos ligadas a idéias de transcendência ou espiritualidade. Desde cedo, elas foram tão-somente “ferramentas de trabalho” – a imagem clássica é a do beat Jack Kerouac ligadíssimo, datilografando dia e noite o romance Na Estrada num rolo de papel de parede. O poeta inglês W.H. Auden era outro que recorria a anfetaminas para trabalhar. Mas, nesse campo, ninguém bate o escritor de ficção científica Philip K. Dick, autor de Minority Report. Ele estava em permanente excitação química. Os estimulantes parecem ter-lhe sugerido vários personagens que são homens-máquina – e alguns que não sabem se são deuses ou aleijões.

Em momento nenhum Marcus Boon defende o uso de drogas. Pelo contrário, ele combate a idéia de que elas conduzam a uma experiência estética. Criada pelos românticos, e associada depois aos temas da rebeldia e da transgressão, essa idéia seria responsável por boa parte da mística em torno dos tóxicos. De fato, a leitura de The Road of Excess faz duvidar muito da capacidade das drogas de transformar alguém em artista. De Paraísos Artificiais, de Baudelaire, a Trainspotting, do escocês Irvine Welsh, passando por Uivo, do beat Allen Ginsberg, escritores chapados produziram alguns bons textos, mas nenhuma obra-prima – a menos que se queira creditar toda a produção de Proust ao éter ou à morfina. Mais ainda. “Desde 1950 não há avanços na literatura sobre narcóticos”, escreve Boon. “Os mesmos relatos confessionais de vício e desintoxicação continuam sendo escritos. Os ambientes são diferentes, mas a história é a mesma: prazer, sofrimento, redenção ou perda.” Como diria o doidíssimo William Burroughs, no fundo “nunca acontece nada no mundo das drogas”.